RIO DE JANEIRO, OUTUBRO DE 1999

Rio de Janeiro, outubro de 1999


(Transcrito do Diário de Alberto Ferrare)

Conceição não parecia um monstro. Ela era pálida, ainda para uma mulher branca. Seus lábios eram vermelhos e seus olhos estavam assustados. Ela estalava compulsivamente seus dedos. Se eu não tivesse visto o diabo dentro dela, eu não saberia. Mas eu vi. No Corcovado, sob os olhos do Cristo Redentor, eu vi os instintos demoníacos trabalhando sobre ela.

Levou algum tempo até que eu tivesse a confiança dela. Sua alma humana ainda lutava contra o mau que habitava seu corpo. Ela me disse que, um dia, alguém se interessou por suas esculturas. E então tudo mudou. Aquele homem fez algum tipo de bruxaria com ela e bebeu todo seu sangue.

Ela também me contou da fome. O desejo ardente por sangue e pela miséria dos outros que a impelia pelas favelas. Lá, ela sabia, ninguém sentiria a falta de uma ou outra vítima. Contra sua vontade, contra sua moral, contra tudo que ela considerava certo, ela caçou entre os pobres do Rio de Janeiro. Ela me contou que a fome a fazia um monstro como os demais.

E eu a contradisse.

- Você não é como os demais. Você sabe que o que está fazendo é errado. Você ainda tem uma alma, e enquanto a tiver, você pode se arrepender. E, se você pode se arrepender, você pode ser salva.

A certa altura, ela acabou concordando.

Nós alugamos um quarto de hotel pra que pudéssemos expulsar o demônio. Parecia a forma mais segura. Sua casa era conhecida por seus pares e eu esperava que a minha não compartilhasse deste destino. O recepcionista me olhou de cima a baixo. Claro, um homem negro pede um quarto de hotel com uma bela mulher branca. Ele pensou que sabia do que se tratava. Como poderia ele saber sobre o trabalho de Deus? Como ele poderia conhecer o beijo de Cristo?

Quando a beijei, senti o gosto contaminado de seu sangue. A essência roubada que mantinha aquele demônio dentro dela “vivo”. Eu a beijei, e aos poucos senti o sangue nela em mim, transubstanciado no Sangue do Cordeiro. O poder de Cristo estava em mim, dando-me forças para fazer o que um simples beijo mortal não poderia.

O demônio lutou, é claro. Conceição havia me pedido para amarrá-la na cadeira pra minha própria segurança. Ela foi sábia. O demônio lutou com todas as suas forças enquanto me xingava e blasfemava. Seus olhos vermelhos queimavam como brasa e suas presas estavam a mostra. Mas ela não era párea para o poder de Deus! Então, com apenas uma palavra, eu transformei a fúria em medo. Em pavor.

Conceição tinha uma péssima aparência naquele momento. Seu corpo estava quase desfalecido, suas pernas estavam sem força, numa posição patética e seus lábios estavam sem cor.

- Estou com fome, ela disse. Você não sabe como estou com fome.

Eu a encorajei a se alimentar da justiça.

- Por favor!, ela disse, e então parou.

Então eu perguntei se ela queria que eu continuasse. Se a sua salvação pelo poder de Cristo era de sua verdadeira vontade. Tremendo, ela fez que sim. Com os olhos fechados, ela atirou sua cabeça para trás e deixou sua boca levemente aberta. Eu então a beijei pela segunda vez e isso retirou todo sangue impuro que nela habitava.

Quando abri meus olhos, os dela também estavam abertos. Sua boca se moveu, mas nenhum som dela saiu.

Eu tinha esperanças de que ela sobrevivesse, mas Cristo não me deu este poder. Porém, eu salvei sua alma da condenação final. Isto já foi um milagre pra mim.

Comentários